Por Marta Rodrigues
Em 2001, o império político de Antônio Carlos Magalhães começou a ruir — e não foi apenas pelas denúncias ou pelos escândalos em Brasília, mas pela força das ruas de Salvador. O povo da Bahia, em sua tradição de luta e resistência, levantou-se para dizer basta ao autoritarismo que por décadas marcou a política local. Nas avenidas, nos campi universitários, nas praças e viadutos, formou-se uma corrente viva de combate ao carlismo, símbolo do mandonismo, da censura, da perseguição e da violência institucional.
Dizia-se à época que quem mandava no Brasil era Fernando Henrique, mas se obedecia a ACM. A frase, repetida nos bastidores da política e nas ruas da Bahia, escancarava o tamanho do poder autoritário de Antônio Carlos Magalhães, que controlava o Senado como se fosse extensão de seu gabinete particular. ACM não era apenas influente — era temido, por seu comportamento despótico, manipulador e intolerante com qualquer sinal de dissidência. Seu estilo era de quem não aceitava oposição: ordenava, perseguia, censurava e destruía reputações.
A conjuntura começou a se abalar em abril de 2000, quando Jader Barbalho lançou-se como candidato à sucessão de ACM no Senado. O embate culminou com a vitória de seu adversário e com a ira do cacique baiano, que passou a atacar abertamente o governo Fernando Henrique Cardoso. Como resultado, perdeu dois aliados no Ministério e viu sua influência nacional desmoronar. Não suportava perder.
Então vieram as revelações: ACM teve acesso ilegal aos votos dos senadores no processo de cassação de Luiz Estevão (PMDB-DF), acusado de envolvimento em um esquema de superfaturamento nas obras do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo. A imprensa nacional noticiou que o então presidente do Senado violou o painel eletrônico, monitorando como cada parlamentar havia votado. A Revista IstoÉ publicou uma conversa reveladora entre ACM e o procurador Luiz Francisco de Souza, onde ele admite o escândalo. Era o retrato de um ditador em decadência: nem o voto secreto escapava de seu controle.
Mas se em Brasília a pressão aumentava, foi na Bahia que a luta tomou corpo. O povo foi às ruas, e a história começou a mudar.
A primeira manifestação ocorreu no dia 10 de maio. Estudantes, trabalhadores e populares ocuparam o centro da cidade e seguiram em direção ao bairro da Graça, onde residia o senador. A ideia era simbólica: fazer a “lavagem” do passeio em frente ao prédio. Mas, na altura da Casa d’Itália, foram barrados pela Polícia Militar.
Mudaram o trajeto, mas não o objetivo. Cruzaram o campus da UFBA, apostando que, por ser área federal, a PM não interviria. No dia 16 de maio, a segunda manifestação foi ainda maior. Começou na Reitoria e seguiu pela Rua João das Botas até o Campo Grande, pegando a PM de surpresa. Dobrou-se à esquerda e alcançou-se a Rua Araújo Pinho rumo ao Viaduto do Canela. Era um movimento inteligente e corajoso.
Lá, centenas de policiais, inclusive tropa de choque e cavalaria, aguardavam os manifestantes. O viaduto se tornou palco de um impasse histórico: de um lado, milhares que queriam marchar; do outro, o Estado armado, às ordens de um regime carlista à beira do colapso. O governador Cesar Borges, títere de ACM, e a secretária de segurança Kátia Borges seguiram à risca as ordens do chefe: reprimir com violência.
A repressão foi brutal. Deputados e autoridades tentaram interceder, mas foram ignorados. A Polícia Federal e o próprio prefeito do campus da UFBA não foram respeitados. A PM invadiu faculdades, atirou balas de borracha, jogou bombas de gás, agrediu estudantes e transformou a universidade em praça de guerra. Foi um ataque à democracia, um show de autoritarismo digno dos piores regimes. A violência gerou repercussão nacional, ganhando os telejornais e manchetes em todo o país.
No dia 30 de maio, a terceira e maior manifestação tomou conta de Salvador. Era dia de celebração: ACM anunciava sua renúncia ao mandato de senador para evitar a cassação e a perda dos direitos políticos. Um ditador havia sido derrotado. Uma vitória popular, conquistada com suor, coragem e enfrentamento.
Celebramos, em 2025, os 24 anos desse maio histórico, para lembrar que nenhuma conquista vem sem luta e que o povo da Bahia não combina com tiranos.
Marta Rodrigues é vereadora do PT de Salvador e presidenta da Comissão de Reparação da Câmara Municipal