Por Talyta Brito
Cuidadosamente o comerciante começa a organizá-los por faixa etária. Alguns homens analisam friamente os diferentes biótipos expostos. Uma expressão de dúvida surge no semblante dos observadores. Qual devo adquirir? São tantas opções disponíveis. Seres humanos à venda, tratados como mercadorias. Seus corpos reluzem, devido ao óleo de palma aplicado nas suas peles minutos antes de serem trazidos a público – uma estratégia adotada para facilitar a comercialização. A princípio, a cena descrita anteriormente remete a uma ficção, mas não foi. Trata-se de uma dura realidade conhecida na história como Diáspora Africana. A jornalista carioca, Eliana Alves Cruz, inicia o seu romance “Água de Barrela” abordando esse episódio. A obra, publicada pela editora Malê, foi a vencedora do Prêmio Oliveira Silveira, da Fundação Palmares, em 2015.
Dados e estatísticas são os recursos mais utilizados por artigos, livros didáticos e acadêmicos para elucidar o tráfico de pessoas do continente africano para diversas regiões do mundo. Eliana opta por recontar o processo de migração forçada a partir de uma ótica diferente. Os números ficam em segundo plano, a autora se empenha em nomear os seus antepassados que tiveram a liberdade ceifada. Esse trabalho de estruturação da árvore genealógica é feito com o auxílio de uma tia. Akin e Ewà Oluwa foram os primeiros ascendentes de Eliana trazidos para a colônia de Portugal. A narrativa detalha as condições insalubres das embarcações utilizadas para o transporte dos escravos, bem como, especifica os tipos de castigos sofridos por desobediência ou tentativa de fuga.
Um aspecto que chama atenção no romance é a preocupação dos senhores de engenho em catequizar os africanos. Assim que os navios tumbeiros ancoravam, um padre benzia a tripulação. Antes de iniciarem as atividades, a sinhá reunia todos os escravos para rezar. A recusa em participar dos momentos de orações implicava em punições físicas. As religiões de matrizes africanas não eram toleradas, por isso os praticantes dessas vertentes religiosas realizavam seus cultos escondidos. Muitos adeptos dessas crenças foram enviados para o tronco durante o período colonial por serem taxados como feiticeiros. A intolerância religiosa é um problema que perdura até os dias atuais. De acordo com o II Relatório sobre Intolerância Religiosa: Brasil, América Latina e Caribe, as comunidades religiosas afro-brasileiras (candomblé, umbanda) são as que mais sofrem preconceito.
O título da obra faz referência a um alvejante caseiro feito com cinzas de madeira muito utilizado pelas ancestrais de Eliana. Dia após dia, elas se dirigiam às margens do Rio Paraguaçu, para lavar as roupas dos seus senhores. Grande parte da história se desenvolve no município de Cachoeira-BA, mais precisamente no Engenho Natividade. As mulheres eram responsáveis pelos serviços da casa-grande, enquanto os homens cuidavam da produção açucareira. Após a abolição da escravidão, as lavagens de roupas passaram a ser remuneradas. As quantias recebidas não conseguiam suprir todas as necessidades do núcleo familiar. Martha, tataravó de Eliana, percebeu que a educação era a única alternativa para mudar aquela realidade. Com muito esforço, ela conseguiu matricular sua filha Damiana na escola. A alfabetização da menina foi um acontecimento significativo, o letramento garantiu às gerações posteriores o abandono do trabalho braçal.
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