O “Guia de Boas Práticas” lançado nesta quarta (24) pela Associação Brasileira de Energia Eólica é uma resposta ainda tímida e insuficiente diante das violações socioambientais que ocorrem nos territórios afetados pelo setor, em especial no Nordeste.
É um reconhecimento de que a implantação e a operação de usinas de energia eólica têm gerado impactos e danos graves – diagnosticados e denunciados há anos por movimentos socioambientais, comunidades tradicionais e pela academia. Ao descrever alguns destes problemas, o documento dá a partida neste processo, mas não avança muito na proposição de soluções para os mesmos.
Quando tenta propor recomendações, o guia recai em textos vagos e suscetíveis à vontade das empresas. Algumas das recomendações de boas práticas estão, inclusive, previstas em lei e ainda assim não vêm sendo implementadas.
Um exemplo são as violações ocorridas em contratos de arrendamento de terras para a instalação de empreendimentos eólicos. Estudo realizado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) demonstra a fragilidade de proprietários de terra ou posseiros diante de grandes empresas, por vezes transnacionais. Eles sofrem assédio de empresas e podem aceitar termos draconianos injustos devido à falta de conhecimento jurídico ou ao estado de vulnerabilidade financeira.
No guia, há sugestões de melhor esclarecimento sobre os direitos, deveres e consequências da assinatura do contrato, assim como facilitação da linguagem utilizada neles, o que é um acerto e precisa ser colocado em prática.
Contudo, há também recomendações genéricas como: “Os contratos devem respeitar o equilíbrio contratual e o princípio da boa-fé, especialmente no que toca ao prazo de vigência e à remuneração” (página 100, item E; grifo nosso). Equilíbrio contratual e boa fé deveriam balizar o contrato como um todo – o que não tem acontecido -, e não só em relação a estes dois quesitos.
Outra questão normalmente levantada por quem vive ao lado de torres eólicas é o barulho constante e o efeito estroboscópico causados pelas mesmas. Pela primeira vez, a associação considera a questão, que vinha sendo minimizada até agora, como problemática. O guia sugere análises mais detalhadas, monitoramento mais frequente e mitigação dos impactos. Falha, porém, em definir que áreas críticas, com grande número de pessoas habitando e transitando, não devem receber usinas.
O mesmo acontece em relação à exclusão de áreas prioritárias para conservação ou produção de alimentos, territórios de comunidades tradicionais, habitats de animais ameaçados de extinção ou locais que sejam patrimônio cultural ou histórico. O guia menciona mitigação de impactos, mas nunca estabelece zonas de exclusão para a atividade. Para o setor não parece haver limites para a expansão de suas atividades, mas é preciso lembrar que os locais por onde passa o maior potencial eólico não são paisagens vazias e sem utilidade.
Ainda falta ao documento o ponto de vista de quem efetivamente sofre o problema na pele. Questões fundamentais, como a manutenção das atividades prévias da propriedade, não são abordadas e outras, a exemplo do risco à obtenção de aposentadoria rural especial, é trazida majoritariamente pela ótica da segurança jurídica corporativa. Se houve participação de ONGs e comunidades na escrita do documento, elas não foram bem assimiladas.
Recentemente um grupo de entidades e comunidades apoiadas pelo Nordeste Potência elaborou o documento Salvaguardas Socioambientais para Energias Renováveis. As mais de 100 sugestões elaboradas pelo grupo apontam caminhos para uma produção de energia renovável em que as comunidades e os territórios sejam respeitados.
Ele é resultado de um ano de discussões, análises e construção coletiva de medidas socioambientais de mitigação. Cada medida proposta é fundamentada em problemas apresentados por 31 instituições participantes do processo – entre movimentos e organizações sociais, povos e populações tradicionais, ativistas socioambientais e pesquisadores da área.
Embora o Guia de Boas Práticas, em sua primeira versão, ainda esteja distante dos caminhos traçados pelos envolvidos na elaboração das salvaguardas, é importante que o setor empresarial se responsabilize por suas práticas e procure melhorá-las. Além da Abeeólica, dezessete empresas do setor participaram da formulação do guia lançado hoje. Que elas se alinhem a uma transição energética verdadeiramente justa, inclusiva e democrática, e que a aplicação dessas recomendações seja apenas o começo.
Fonte: ASCOM Plano Nordeste Potência
Foto: Joelma Antunes