Por Natália Padalko
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) apresenta diversos desafios para as famílias, especialmente na busca por tratamentos e suporte adequados. Em uma conversa com a psiquiatra Dra. Fernanda Valente Schultz, foram discutidas estratégias práticas e eficazes para o cuidado diário desses pacientes em diversas esferas.
Dra. Fernanda destacou a importância de um acompanhamento individualizado e multidisciplinar, focado nas necessidades específicas de cada criança, incluindo terapias comportamentais e suporte educacional especializado.
Para a médica, o foco deve permanecer no acesso a tratamentos personalizados e à educação das famílias, essenciais para o bem-estar das crianças no espectro.
A seguir, confira alguns insights valiosos baseados na experiência da Dra. Fernanda Valente Schultz.
Sinais que pedem atenção
A dificuldade de muitas famílias em obter um diagnóstico claro costuma ser uma importante e, muitas vezes, a primeira, fonte de angústia para os pais. Como aconteceu com Paty Marabiza, mãe de Davi, que enfrentou essa morosidade até o fechamento de um diagnóstico mais preciso.
“A descoberta foi bastante difícil. Durante a pandemia, Davi apresentou questões sensoriais, seletividade alimentar e quase não falava. Observamos um retrocesso em habilidades que ele já havia desenvolvido. Os médicos atribuíram isso ao fato de ele não estar frequentando a escola e ao impacto da pandemia. Eu não aceitei essa explicação e decidi buscar a opinião de outros profissionais”, conta Paty.
Nesse contexto, Dra Fernanda destaca os sinais aos quais os pais devem estar atentos e enfatiza a importância de buscar uma avaliação especializada caso esses sinais sejam notados.
“Os pais devem observar sinais como a diminuição da interação, regressões na linguagem e aumento de estereotipias. Se a criança começa a evitar o contato visual ou recusar atividades antes aceitas, ou se há uma diminuição no uso de palavras ou frases, isso pode indicar dificuldades adicionais.”
Estereotipias e vida escolar
As estereotipias e a vida escolar podem representar desafios significativos para pais e cuidadores de crianças com autismo. Erika Denise, mãe de Davi, diagnosticado com TEA pouco antes dos dois anos, compartilha sua experiência:
“Davi apresenta muitas estereotipias. Ele costumava bater a cabeça contra a parede e, mesmo medicado, tinha dificuldades para dormir. Além disso, seu comportamento hiperativo e a falta de concentração tornavam sua participação em atividades escolares praticamente impossível, o que complicou ainda mais sua rotina e desenvolvimento”, conta.
Nesse sentido, Dra Fernanda explica que o primeiro passo é compreender o que são estereotipias:
“Estereotipias são comportamentos repetitivos, como balançar o corpo, girar objetos, balançar as mãos ou repetir palavras e frases. Esses comportamentos frequentemente servem para autorregulação ou expressão de emoções”, explica a psiquiatra.
A médica recomenda que, ao lidar com comportamentos estereotipados em crianças com autismo, a primeira etapa deve ser compreender o contexto e o que a criança pode estar tentando comunicar por meio desses comportamentos.
Como lidar?
“Em vez de tentar eliminar esses comportamentos imediatamente, é importante entender o contexto em que ocorrem e o que a criança está tentando comunicar através deles. Identificar a função e a comunicação subjacente é crucial. Observando quando, onde e por que as estereotipias ocorrem, podemos identificar gatilhos, como estresse ou ansiedade. Por exemplo, um paciente ansioso pode buscar apoio físico, como segurar a parede, para se autorregular. Reconhecer essas necessidades sensoriais pode ajudar na escolha de alternativas mais apropriadas”, explica a médica.
Outra estratégia é proporcionar brinquedos, texturas e técnicas de relaxamento que pode ajudar a criança a se autorregular de maneiras menos disruptivas. Além disso, terapias como a ABA (Análise Comportamental Aplicada) podem ser úteis para modificar comportamentos estereotipados, substituindo-os por alternativas mais funcionais.
“É fundamental aplicar essas terapias com sensibilidade, respeitando a individualidade da criança e evitando abordagens punitivas ou coercitivas”.
Vida escolar e a importância da comunicação entre pais e professores
No que diz respeito às dificuldades na participação escolar, adaptações curriculares são essenciais para criar um ambiente inclusivo. Isso pode englobar a presença de um mediador, ajuste de horários e materiais adaptados às necessidades da criança.
“Professores e colegas devem ser educados sobre o autismo, e a comunicação deve ser aberta entre pais, professores e terapeutas para formar uma força-tarefa na linha de cuidado.”
Dra Fernanda reforça ainda que os pais também desempenham um papel crucial e devem buscar apoio em grupos especializados, além de cuidar de seu próprio bem-estar.
“A metáfora do avião é útil: assim como em uma emergência, os pais devem colocar sua própria máscara de oxigênio primeiro antes de ajudar a criança. Se os pais não se cuidam, o cuidado com a criança pode ser comprometido”
Interação social e a seletividade alimentar
A médica aponta que a seletividade alimentar é um desafio significativo para muitas crianças, afetando não apenas a alimentação, mas também a interação social e a participação em atividades, como ir à escola. “A dificuldade com a alimentação pode reduzir oportunidades de socialização e até levar a evitar ambientes sociais”, afirma a Dra. Schultz.
Nesse sentido, Dra Fernanda sugere possíveis abordagens como:
- Integração sensorial: Terapias focadas na integração sensorial são úteis para lidar com desafios relacionados a estímulos sensoriais. “Clínicas especializadas em terapia ocupacional e integração sensorial podem oferecer suporte valioso”, diz a médica.
- Terapia ocupacional e alimentar: Essas terapias visam introduzir novos alimentos e estabelecer estratégias comportamentais para ampliar a variedade alimentar da criança. “Utilizamos planos estruturados e previsíveis para a introdução gradual de novos alimentos”, detalha.
Promoção da autonomia e combate ao preconceito
“Vindo da saúde mental pública, sempre tive uma forte prática de cuidado multidisciplinar e posso afirmar que, quando se trata de Autismo, essa abordagem é absolutamente crucial”, destaca a médica, que traz ainda algumas práticas que podem ser bastante eficazes:
- Desenvolvimento de habilidades funcionais: Focar em atividades da vida diária, como vestimenta, higiene pessoal, autocuidado e preparo de alimentos. Utilizar ferramentas visuais pode ser muito útil para tornar essas atividades mais tangíveis e compreensíveis para a criança.
- Incluir a criança nas decisões cotidianas: É importante tratar a criança como um sujeito ativo na sua própria história, em vez de apenas um objeto de intervenção. Oferecer oportunidades para que a criança tome decisões e participe ativamente da sua própria vida ajuda a fortalecer sua independência.
- Combate ao preconceito: A maior vacina contra o preconceito é a educação. Fortalecer a autoestima das crianças e promover uma compreensão ampla do autismo na comunidade são passos fundamentais para enfrentar e reduzir o preconceito.
- Equipe multidisciplinar: A equipe deve incluir psiquiatra, psicólogo, fonoaudiólogo, pedagogos e outros profissionais envolvidos no cuidado da criança. Cada um traz uma perspectiva e habilidades únicas que contribuem para um plano de ação eficaz.
- Suporte às famílias: Oferecer suporte para as famílias é igualmente importante. Isso pode incluir terapia para familiares e acompanhantes terapêuticos, ajudando as famílias a lidar com os desafios e a implementar o plano de ação de forma eficaz.
“Essas práticas e a colaboração de uma equipe multidisciplinar são fundamentais para garantir que a criança possa desenvolver sua autonomia e enfrentar o preconceito de maneira efetiva. Além disso, preparar a criança para a vida adulta, com um plano que considere sua integração no mercado de trabalho e na sociedade, é essencial para promover sua independência e bem-estar futuro”, conclui a médica.
Práticas e terapias
Dra Fernanda constata que, hoje, temos uma variedade de alternativas terapêuticas para além dos medicamentos alopáticos para o autismo. Algumas das principais alternativas incluem:
- Terapia ABA (Análise Comportamental Aplicada): Esta abordagem se concentra na melhoria de comportamentos específicos, habilidades de comunicação, interação social e reforço positivo. É amplamente estudada e difundida atualmente.
- Terapia Ocupacional: Focada no desenvolvimento de habilidades sensoriais e motoras, a terapia ocupacional visa promover a independência nas atividades diárias.
- Terapia Fonoaudiológica: Direcionada para melhorar as habilidades de comunicação, fala e uso da linguagem.
- Intervenções em Psicoeducação: Programas educacionais que ajudam a entender e gerenciar o comportamento e as habilidades cognitivas.
- Terapias Nutricionais: Dietas que eliminam glúten e caseína podem melhorar comportamentos e reduzir a agressividade. A caseína, por exemplo, pode aumentar a permeabilidade intestinal, levando à absorção de toxinas no sistema sanguíneo e afetando a saúde geral. Suplementos como ômega-3 e vitamina D também são importantes, mas é preciso cautela com o uso de nutracêuticos e sua regulação de neurotransmissores.
- Terapias Integrativas Alternativas: Terapias como sensorial, musicoterapia, arteterapia e terapia com animais podem oferecer benefícios adicionais e ajudar na regulação emocional e comportamental.
“Essas alternativas podem complementar o tratamento tradicional e ajudar a melhorar a qualidade de vida das crianças com autismo. É sempre importante discutir essas opções com profissionais de saúde especializados para adaptar as abordagens às necessidades específicas de cada criança”, alerta a médica.
Cannabis medicinal e o Autismo
“De fato, a Cannabis tem se mostrado uma alternativa válida para reduzir sintomas como irritabilidade e agressividade em crianças com autismo. A maioria dos estudos disponíveis foca em óleos ricos em CBD, geralmente na proporção de 20 para 1, com formulações full-spectrum. No entanto, ainda precisamos de mais pesquisas com diferentes variedades de óleos.
Além do CBD, o CBG (Canabigerol) também tem sido utilizado por alguns profissionais com bons resultados. Pessoalmente, aprecio o CBG por sua eficácia na melhora da ansiedade, qualidade do sono e regulação do ciclo sono-vigília. Regular o sono é fundamental, pois o sono adequado é essencial para a detoxificação neuronal.”
Ela acrescenta que a planta pode também auxiliar na regulação emocional, tornando a criança mais confortável e menos ansiosa durante as refeições e interações sociais. Foi o que ocorreu com Davi, como relatou sua mãe, Érica, ao Portal Cannabis&Saúde, expressando alívio por conta desse recurso terapêutico na rotina de seu filho.
“Como mãe, tudo que queremos é que nossos filhos evoluam. Principalmente quando ele é não verbal. Ver ele ter autonomia é confortante. Davi começou a balbuciar, dizendo ‘dá’ e ‘sim’. Ele parou de se machucar e não bate mais a cabeça contra a parede. A mudança foi impressionante,” destaca Érica.
Acampamento atento e individualizado é fundamental!
No entanto, a médica ressalta que a utilização da Cannabis deve sempre ser supervisionada por um profissional e integrada a outras terapias e estratégias, respeitando a individualidade de cada caso.
“Eu costumo tratar cada caso de forma singular, realizando ajustes de dose durante consultas e oferecendo suporte contínuo, incluindo conversas via WhatsApp para auxiliar nesse ajuste. Também gosto de fornecer informações sobre o sistema endocanabinoide aos pacientes e suas famílias, compartilhando vídeos explicativos para ajudar na compreensão do tratamento.”
Em resumo, a médica reforça que a combinação de terapias comportamentais, ocupacionais e, quando apropriado, o suporte da Cannabis pode ser eficaz para melhorar a interação social e abordar a seletividade alimentar em crianças que estão no espectro.
Para além do diagnóstico
Por fim, Dra Fernanda diz que é interessante que foquem nos potenciais da criança, identificando e valorizando suas habilidades individuais.
“Muitas crianças com autismo têm talentos notáveis em áreas como música, arte, memória, matemática, entre outras. É importante reconhecer e celebrar essas habilidades, em vez de ver o autismo apenas como um conjunto de limitações”.
Além disso, para a médica, é fundamental que os pais vejam além do diagnóstico e reconheçam que a criança não é definida apenas por essa condição.
“Cada criança é única e possui seus próprios interesses e habilidades. Embora o autismo possa apresentar desafios, também é associado a diversas habilidades e talentos especiais. Celebrar as pequenas conquistas e apoiar a criança no desenvolvimento de suas áreas de interesse são práticas essenciais. Incentivar o desenvolvimento dessas habilidades pode trazer grande benefício para a autoestima e o bem-estar da criança.”
Consulta com profissionais especializados
De acordo com a RDC 660 da ANVISA, o uso de Cannabis medicinal no Brasil é permitido legalmente, desde que recomendado e prescrito por um profissional de saúde qualificado.
Para verificar se a Cannabis é uma opção adequada, é fundamental buscar a orientação de um médico especialista. Caso tenha interesse em entender se essa terapêutica pode ser viável para a sua condição, consulte um profissional especialista nesse tipo de abordagem.
Fonte: Cannabis e Saúde
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