Com olhar clínico e sensível, Rafaela da Rosa explora os caminhos entre saúde bucal, bem-estar e inovação em sua nova coluna.
O Brasil já foi referência global no controle do tabagismo, com políticas públicas robustas que conseguiram reduzir significativamente o número de fumantes adultos entre 2006 e 2022.
Mas essa curva começou a subir novamente. Em 2024, o país registrou um aumento de 25% no número de fumantes — a primeira elevação desde 2007. Entre os homens, a prevalência passou de 11,7% para 13,8%; entre as mulheres, de 7,2% para 9,8% [1].
Cigarros eletrônicos avançam entre os jovens
Ao mesmo tempo, um fenômeno silencioso tomou força entre os mais jovens: os cigarros eletrônicos. Apesar de proibidos no Brasil desde 2009, o uso entre adolescentes e adultos jovens tem crescido de forma alarmante. Segundo a Pesquisa Vigitel, 6,1% dos jovens de 18 a 24 anos já fazem uso regular desses dispositivos. E mais grave: quase um em cada quatro jovens brasileiros já experimentou o vape de nicotina — 23,9%, segundo dados recentes da Fiocruz e do Ministério da Saúde. Entre adolescentes de 13 a 17 anos, 16,8% já relataram ter usado esses dispositivos ao menos uma vez [2].
Cresce a busca por apoio no SUS
Esse contexto não é apenas um desafio estatístico. É um cenário clínico de sofrimento mascarado. Em 2023, mais de 420 mil pessoas procuraram o SUS em busca de apoio para parar de fumar — quase o dobro do ano anterior [3]. Muitos, contudo, não se encaixam nos modelos tradicionais de cessação. Entre recaídas, sintomas de abstinência e dificuldade de adesão, o cuidado ainda precisa se ampliar.
Um vício que vai além da química
O tabaco segue como uma das substâncias psicoativas mais consumidas no mundo, e seu impacto na saúde pública é vasto, persistente e desafiador [4]. Mais do que uma dependência química, o tabagismo representa um comportamento condicionado por padrões emocionais, sociais e neurológicos profundamente enraizados — o que torna sua cessação algo mais complexo do que simplesmente “parar de fumar”.
Canabidiol (CBD) como aliado no abandono do cigarro
O uso terapêutico do canabidiol (CBD) desponta como um recurso promissor na abordagem integrada do tabagismo. Isso não apenas pela sua ação ansiolítica e moduladora do sistema endocanabinoide (SEC), mas também pela maneira como ele interfere no sistema dopaminérgico e nas respostas comportamentais associadas ao hábito de fumar. Estudos recentes demonstram que o CBD pode atuar sobre múltiplas frentes: reduzindo o craving, modulando a resposta ao estresse, diminuindo a reatividade a pistas ambientais e, inclusive, alterando o metabolismo da nicotina [5,6].
Estudo clínico aponta redução do consumo com CBD
Em um ensaio clínico com 56 fumantes que desejavam parar de fumar, o uso de CBD oral (400 a 800 mg/dia) por apenas três dias resultou em redução significativa no número de cigarros consumidos, especialmente no grupo de maior dose. Além disso, os participantes relataram menor craving e ansiedade em contextos reais do cotidiano, medidos por tecnologia de avaliação ecológica momentânea (EMA) [5].
Esse efeito rápido e seguro reforça a hipótese de que o CBD pode ajudar na transição entre a dependência ativa e o abandono, ao mesmo tempo em que suaviza os sintomas de abstinência.
CBD e o metabolismo da nicotina
Esse potencial se amplia quando observamos a capacidade do CBD de interferir na metabolização da nicotina. Um estudo in vitro identificou que o composto e seu metabólito 7-OH-CBD inibem as enzimas hepáticas CYP2A6 e CYP2B6, responsáveis por converter nicotina em cotinina [6].
Na prática, isso pode prolongar a presença da nicotina no organismo e reduzir a frequência da necessidade de reposição, o que representa uma estratégia complementar ao descondicionamento fisiológico.
Ação no sistema de recompensa e prevenção de recaídas
Além dos efeitos periféricos e metabólicos, o CBD exerce papel central no equilíbrio neuroquímico do sistema de recompensa. Estudos em modelos celulares mostram que ele atua como agonista parcial dos receptores dopaminérgicos D2 e modulador alostérico negativo do CB1 [7]. Isso significa que o CBD pode reconfigurar o tônus dopaminérgico sem bloquear o prazer, mas enfraquecendo o reforço excessivo gerado pela nicotina. Essa suavização do circuito de reforço é considerada essencial na prevenção de recaídas.
Do ponto de vista sináptico, há evidências de que os canabinoides modulam a liberação de dopamina em regiões-chave como o núcleo accumbens e o córtex pré-frontal [8]. Essa regulação interfere na formação de hábitos, na tomada de decisões e na manutenção de comportamentos motivados. Em pessoas com dependência, o SEC tende a funcionar de maneira desregulada, promovendo hipersensibilidade a gatilhos emocionais e ambientais.
A presença do CBD — sem os efeitos euforizantes do THC — pode ajudar a restaurar esse equilíbrio e permitir que o indivíduo retome o controle sobre seus impulsos e escolhas.
O valor simbólico do gesto de fumar
Há também um aspecto frequentemente negligenciado no tratamento do tabagismo: o gesto. Fumar é um comportamento aprendido que envolve o ato de levar algo à boca, puxar o ar, soltar a fumaça. Essa dimensão simbólica e sensorial do hábito tem força por si só, independentemente da nicotina. Nesse sentido, o uso de CBD em formulações inaladas (como vaporizadores com extrato full spectrum sem nicotina) pode ter um papel valioso na transição comportamental.
Trata-se de um dispositivo que preserva o gesto sem alimentar o vício, modulando ansiedade, tensão e craving sem reforçar a dependência dopaminérgica.
Evidências se expandem para outras dependências
As evidências sobre o uso de canabinoides no manejo da dependência não se limitam ao tabaco. Ensaios clínicos com usuários de álcool e crack mostram que o CBD é seguro, bem tolerado e, em alguns casos, superior às medicações convencionais na redução do uso e dos sintomas associados [9,10,11]. Esses achados reforçam a ideia de que o canabidiol atua como um agente de autorregulação, mais do que como um substituto químico.
Um cuidado mais regulador, menos medicalizante
Diante de um cenário em que intervenções convencionais muitas vezes falham em abordar a complexidade subjetiva do vício, os canabinoides oferecem um novo caminho: mais regulador, menos medicalizante. Um cuidado que não se limita ao combate à substância, mas que convida o indivíduo a construir novos sentidos para seus gestos, seus vazios e suas escolhas.
Fonte: Sechat
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