Especialista da USP explica como o uso de cannabis na adolescência pode afetar o desenvolvimento do córtex pré-frontal e alerta sobre os impactos cognitivos e emocionais a longo prazo
Há algo profundamente delicado em acompanhar o florescer de um filho na adolescência. É como observar uma ponte sendo construída entre a infância e a vida adulta, tijolo por tijolo, em meio a ventos fortes, instabilidades emocionais, buscas por identidade e, muitas vezes, riscos invisíveis.
Nesse cenário, a cannabis pode parecer, para muitos jovens, apenas mais um experimento de liberdade. Já para os pais, uma preocupação além, visto que, o acesso a vaporizadores, narguiles e tabacos, mesmo ilegal, está a um passo de distância. Mas, sob o olhar atento da neurociência, esse experimento traz implicações sérias para o cérebro ainda em formação.

O psiquiatra e neurocientista José Diogo Ribeiro de Souza, doutor pela USP de Ribeirão Preto e especialista em canabinoides com mais de uma década de experiência em pesquisas clínicas, lança luz sobre esse tema com sensibilidade e firmeza.
Ele nos convida a entender o que está realmente em jogo quando adolescentes têm contato precoce com a cannabis e como pais e mães podem agir com orientação, presença e afeto, sem julgamentos.
O cérebro adolescente: um projeto em pleno andamento
“O córtex pré-frontal é como o maestro do cérebro”, explica o neurocientista. Ele é responsável por decisões, planejamento, autocontrole e regulação emocional, justamente aquelas habilidades que parecem estar “carregando” na adolescência. E não é por acaso: essa é uma das últimas áreas a amadurecer, passando por um processo sofisticado de poda sináptica e reorganização de conexões neurais.
Durante essa fase, o cérebro é altamente plástico, ou seja, moldado pelas experiências e pelo ambiente. Mas essa plasticidade também o torna vulnerável. “A exposição precoce ao THC, principal componente psicoativo da cannabis, pode interferir na maturação cerebral, desorganizando funções importantes”, alerta o especialista.
Estudos de neuroimagem mostram, inclusive, que adolescentes usuários frequentes podem apresentar redução do volume do córtex pré-frontal e alterações em sua conectividade, o que se reflete em impulsividade, dificuldades cognitivas e até riscos psiquiátricos.
Um sistema em desequilíbrio: os impactos da cannabis no cérebro em formação
O sistema endocanabinoide, regulador natural do nosso organismo, é central no desenvolvimento cerebral. Ele atua na formação das sinapses, no equilíbrio entre neurotransmissores e na arquitetura emocional do jovem. “Quando o THC ativa artificialmente esse sistema, ele pode desequilibrar esse processo, afetando o córtex pré-frontal, o hipocampo e o sistema límbico”, explica José Diogo.
Segundo o médico, essas alterações não são apenas teóricas, elas estão ligadas a déficits de atenção, memória, controle inibitório e ao aumento da vulnerabilidade a transtornos como ansiedade e psicose. “O risco é maior em quem tem predisposição genética, histórico familiar ou começa a usar precocemente produtos com alta concentração de THC”, reforça.
Efeitos reversíveis? Depende.
A esperança de reversão existe, mas não é universal. Em casos de uso leve e interrompido precocemente, pode haver recuperação parcial das funções cognitivas.
Já em situações de uso prolongado e intenso durante os anos críticos do desenvolvimento, os efeitos tendem a ser mais persistentes. “É comum, na prática clínica, vermos jovens com funcionamento semelhante ao TDAH após anos de uso”, observa o especialista.
Recreativo x terapêutico: distinções fundamentais
Muitos pais se perguntam: se a cannabis pode ser remédio, por que não pode ser usada livremente? José Diogo responde com clareza: “o uso medicinal é orientado por protocolos, com predominância de CBD e baixa concentração de THC, indicado apenas em situações específicas como epilepsias resistentes ou autismo com sintomas graves. Já o uso recreativo, especialmente sem controle de dose e frequência, não é uma prática neutra e pode trazer consequências importantes”.
É justamente essa diferença que deve ser comunicada com responsabilidade. A ciência, segundo ele, não serve para alarmar, mas para oferecer dados claros que ajudem pais e filhos a tomar decisões mais conscientes.
Cannabis x Adolescência: falar com ciência, mas também com afeto
A pergunta que paira é: como educar sobre isso? Como proteger sem sufocar, como orientar sem gerar culpa? Para o neurocientista, a chave está na educação contínua, acessível e livre de estigmas. “Políticas públicas precisam abordar neurodesenvolvimento e saúde mental com profundidade nas escolas, capacitar profissionais da saúde e da educação, e promover redes de apoio familiar”, diz.
Mais do que discursos proibicionistas ou permissivos, ele propõe construir diálogo. “É preciso que os adolescentes entendam como o cérebro deles funciona e como o uso de cannabis pode interferir nesse funcionamento. Não como ameaça, mas como informação que empodera”.
Cannabis na adolescência: um chamado para mães e pais, mais presença e menos julgamento
No fim das contas, a ciência pode ser o farol, mas o porto seguro ainda são os pais, mães e cuidadores atentos. A adolescência é, por natureza, um campo de testes. E o uso da cannabis pode ser apenas mais um deles. Mas quando há orientação segura, conversa franca e amor incondicional, é possível atravessar esse mar com menos riscos.
A mensagem do doutor José Diogo Ribeiro de Souza é clara: o uso da cannabis na adolescência não é isento de consequências e a proteção começa com informação, mas se fortalece com o vínculo. “Informar é proteger. E proteger não é interditar indiscriminadamente, mas abrir caminhos para escolhas mais conscientes, com base na melhor ciência disponível”, pontua o especialista.
Que pais e mães possam seguir construindo essas pontes com escuta, paciência e presença amorosa, porque o cérebro amadurece, mas o afeto é o que dá forma ao mundo.
Fonte: Sechat
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