Impulsionada pela urgência das famílias, respaldo científico e pressão social, a regulamentação da Cannabis medicinal avançou nos últimos dez anos — mas o cultivo nacional segue pendente, e o futuro do setor agora depende de uma resposta da Anvisa.
Na última terça-feira (06), celebrou-se uma década desde a publicação da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 17/2015 da Anvisa — um importante limiar para o avanço da regulamentação do uso medicinal da Cannabis no país.
A publicação, que estabeleceu os critérios para a importação excepcional de medicamentos à base de canabidiol (CBD), foi um passo fundamental para garantir o acesso de pacientes brasileiros a tratamentos para diversas condições, como epilepsia refratária, dor crônica e condições neurológicas.
A partir daí, o país passou a trilhar um caminho paulatino e intricado, impulsionado pela pressão social e pela crescente demanda por alternativas terapêuticas à base de Cannabis. No entanto, o acesso ainda é restrito e o cultivo terapêutico permanece sem regulamentação. Agora, em maio de 2025, o prazo dado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) para que a Anvisa ou a União definam regras para o cultivo doméstico chega ao fim, reacendendo o debate sobre os próximos passos para a Cannabis medicinal no país.
Quando a urgência das famílias encontrou a ciência – e forçou uma mudança histórica
Mesmo antes da regulamentação, lá em 2015, diversas famílias utilizavam o canabidiol de maneira informal no tratamento de condições graves. Além dos óbvios entraves logísticos, enfrentavam também o temor da penalização legal.
Foi com esse pano de fundo que o documentário Ilegal (2014) trouxe à tona a história de Anny Fischer — uma criança diagnosticada com a rara síndrome de CDKL5, que sofria dezenas de convulsões diárias e apresentou uma melhora significativa com o uso de CBD.

Com grande repercussão na mídia e respaldo de profissionais da saúde, do direito e da ciência, o documentário trouxe visibilidade ao tema e catalisou um debate público de alcance nacional. A comoção social rapidamente se traduziu em uma cascata de ações: inúmeras famílias passaram a recorrer ao Judiciário para garantir o direito de importar o CBD.
Pressionada por essa mobilização inédita e pelo acúmulo crescente de evidências científicas, a Anvisa publicou, há exatos dez anos, a RDC nº 17, autorizando de forma excepcional a importação de produtos à base de canabidiol para uso pessoal, mediante prescrição médica, laudo técnico e termo de responsabilidade.
Embora tenha sido um marco regulatório sem paralelo, a norma ainda manteve limites importantes. Produtos com tetrahidrocanabinol (THC) só poderiam ser importados se tivessem concentração inferior a 0,2%. Esse critério técnico continua gerando críticas, especialmente em casos que exigem formulações mais complexas.
Dez anos da RDC nº 17/2015: trajetória da regulamentação da Cannabis no país
Nos anos seguintes à RDC 17/2015, o Brasil seguiu um modelo regulatório gradual, inicialmente focado na autorização individual de importações e, posteriormente, avançando para a ampliação do acesso e a criação de normas mais abrangentes.
Esse processo foi impulsionado pela pressão social, pelo avanço do conhecimento científico e pela crescente demanda por tratamentos à base de Cannabis.
Veja os principais marcos dessa trajetória:
- 2015 – RDC nº 17: Marco inicial da regulamentação da Cannabis medicinal no Brasil. Autorizou a importação de produtos com CBD mediante prescrição médica e laudo justificando a necessidade. Limitou o teor de THC a 0,2%.
- 2016 – RDC nº 128: Estabeleceu critérios para renovação das autorizações, facilitando a continuidade do tratamento para pacientes já cadastrados.
- 2019 – RDC nº 327 : Criou a categoria de “produtos de Cannabis” no país e regulamentou sua comercialização em farmácias, mediante autorização da Anvisa. A norma representou um avanço importante ao ampliar a disponibilidade de medicamentos com canabinoides no mercado nacional.
- 2020 – RDC nº 335: Detalhou as regras de prescrição, rotulagem e dispensação. Estabeleceu duas categorias distintas: produtos com até 0,2% de THC (acesso facilitado) e produtos com teor superior, sujeitos a regras mais restritivas.
- 2022 – RDC nº 660: Substituiu a RDC nº 17, modernizando o processo de importação. A digitalização dos pedidos e a eliminação da exigência de autorização prévia tornaram o acesso mais ágil e desburocratizado. A norma também permitiu a importação por pessoas físicas e jurídicas, tornando o processo mais flexível. No mesmo ano, a Anvisa atualizou sua plataforma de importação e passou a reconhecer os cirurgiões-dentistas como profissionais habilitados a prescrever Cannabis. Com isso, essa classe passou a incorporar o uso de fitocanabinoides nos tratamentos voltados à saúde bucal
- 2024 – Demanda crescente evidencia necessidade de expansão: A importação de produtos derivados de Cannabis se consolidou como um dos serviços mais acessados no Portal Gov.Br. Em 2024, a solicitação ocupou a quinta colocação entre os serviços mais utilizados, com 227.167 avaliações e uma média de satisfação de 4,53 estrelas. O dado reforça o crescimento da demanda por tratamentos e a importância de regulamentações mais abrangentes.
- 2025 – Decisão do STJ e expectativa por nova regulamentação: O Superior Tribunal de Justiça determinou que a Anvisa ou a União definam até maio de 2025 as regras para o cultivo de cannabis com até 0,3% de THC para fins medicinais e farmacêuticos. A medida pode abrir caminho para a produção nacional de insumos e medicamentos, com impacto direto sobre o preço, o acesso e a sustentabilidade do setor.
Acesso desigual, judicialização e os limites da regulação atual
Embora os avanços tenham sido significativos ao longo da última década, o uso medicinal da Cannabis ainda permanece limitado para grande parte da população.
A falta de uma política nacional que regulamente o cultivo de Cannabis amplia os desafios do setor. Sem produção interna, os custos continuam altos, o que compromete o acesso regular e individualizado — especialmente para pacientes que dependem de concentrações específicas ou fórmulas personalizadas.
Nesse cenário, a judicialização tornou-se uma brecha importante para pacientes que buscam um tratamento. Embora o país tenha normas para importação e comercialização, a falta de regulamentação sobre o plantio gera um ambiente regulatório instável — com impactos diretos sobre o acesso, a segurança jurídica e o próprio desenvolvimento do setor.
A expectativa é que, ainda neste mês de maio, a Anvisa responda à determinação do Superior Tribunal de Justiça com diretrizes claras para o cultivo de Cannabis com fins medicinais. Essa regulamentação pode marcar uma virada no modelo atual, abrindo espaço para uma política mais acessível, nacionalizada e compatível com as necessidades reais dos pacientes brasileiros.
O próximo passo: regulamentar o cultivo nacional
Em fevereiro de 2025, o STJ manteve a decisão que obriga a Anvisa ou a União a regulamentar, até maio deste ano, o cultivo de Cannabis com baixo teor de THC. A medida tem potencial para redefinir o cenário atual, viabilizando a produção nacional de medicamentos, com impacto direto na redução de custos e na ampliação do acesso para os pacientes brasileiros.
Segundo especialistas, permitir o cultivo doméstico representa um passo necessário e alinhado aos fundamentos do direito à saúde e à dignidade da pessoa humana. A deliberação da Anvisa pode inaugurar uma nova fase na regulamentação da Cannabis medicinal no Brasil.
Dez anos depois: avanços consolidados, mas desafios persistem
Desde a publicação da RDC nº 17, a medicina endocanabinoide ganhou destaque em consultórios, congressos e universidades. Isso reflete o crescente reconhecimento do tema no campo da saúde.
Em 2024, o setor alcançou a marca de 672 mil pacientes em tratamento, com cobertura em mais de 80% dos municípios brasileiros — um aumento de 56% em relação ao ano anterior, segundo o 3º Anuário da Cannabis Medicinal no Brasil. A maior parte desses pacientes consome produtos importados via RDC 660, que lideram as vendas no país.
Apesar dos avanços, o acesso aos tratamentos ainda enfrenta limitações, especialmente no que diz respeito à diversidade de produtos e à presença em regiões mais afastadas. Como a produção nacional ainda não foi regulamentada, o mercado segue sustentado majoritariamente por produtos importados, cuja oferta tem sido fundamental para atender à crescente demanda dos pacientes brasileiros. Ainda assim, a expectativa em torno da regulamentação do cultivo nacional reflete o desejo por uma política de acesso mais ampla, com soluções que possam combinar qualidade, variedade e maior capilaridade no território nacional.
Fonte: Cannabis & Saúde
Foto: Reprodução Cannabis & Saúde