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E quando o lixo vira roupa? E quando a roupa vira arte?

Por Laís Matos

Pioneira no Brasil ao trabalhar com economia circular e soluções de upcycling, a designer, artesã e gestora Luciana Galeão abriu a exposição “Detalhes do Feito À Mão, a poesia do fazer” – que aborda experiências, vivências e processos construídos ao longo dos 25 anos de sua marca com ênfase no reaproveitamento criativo de resíduos.

A mostra, que tem a proposta de evidenciar os detalhes do trabalho manual pelos olhos de quem faz e integrar os processos criativos da moda com problemáticas socioambientais, foi inaugurada ao público na Casa Cronópios de Arte e Cultura – espaço dedicado a dar voz e visibilidade à pesquisa e inovação na Arte, localizado no Santo Antônio Além do Carmo (ao lado do Yolo Café).

Para a idealizadora e diretora artística da Casa Cronópios, Licia Morais, o poder da arte contemporânea está em não se restringir simplesmente à uma função decorativa, “de deleite”, e o trabalho de Luciana Galeão contempla essa premissa ao combinar o caráter estético com uma importante função social que evoca a urgência para soluções criativas de preservação do meio ambiente.

“É uma arte que traz uma mensagem por trás, é metafórica, e traz recados do meio ambiente para a transformação da sociedade em vários níveis. A Cronópios trabalha no sentido de se aliar a essa transformação e sair do óbvio”.

Para entender mais sobre o projeto, batemos um papo especial com Luciana Galeão e o seu trabalho autoral, marcado pela fusão entre criação em design de moda, gestão, pesquisa de matérias primas recicláveis e empreendedorismo social. Segue com a gente!

Laís Matos – Como nasceu a exposição ‘Detalhes do Feito À Mão, a Poesia do fazer’? Qual é a identidade/proposta desse projeto?

Luciana Galeão – Em 2021, a marca Luciana Galeão comemorou 25 anos. Decidimos fazer a exposição para celebrar esse momento dando ênfase ao trabalho socioambiental que já desenvolvemos há mais de 20 anos.  Reunimos no acervo peças icônicas feitas em 2012 com reutilização de uniformes dos trabalhadores da construção da Arena Fonte Nova e peças novas do acervo, também feitas com reutilização criativa. Junto com isso tivemos a parte pedagógica com três turmas da nossa capacitação em processo criativo de upcycling. Para nós, é importante que as pessoas entendam o principal motivo desse trabalho, que é gerar soluções de impacto positivo.

Detalhes do Feito à Mão, a poesia do fazer é uma lente de aumento para as sutilezas do trabalho artesanal que é a principal identidade do nosso trabalho.

LM – Sua trajetória é marcada pela moda autoral, sustentável, com função social. De que forma a moda pode ser ferramenta de transformação social, considerando suas características históricas e culturais?

LG – O nome moda vem do latim, ” modus”, e está totalmente relacionada a comportamento e estilo de vida. A sociedade está cada vez mais atenta a essas questões e, se a moda é o reflexo da maneira como vivemos, nos comportamos e nos relacionamos, se torna impossível não aliar essas questões ao trabalho de moda. Um exemplo disso foi a campanha ‘O câncer de mama no alvo da moda’ que, no final da década de 1990, fez com que as pessoas começassem a falar sobre autocuidado feminino e quebra de tabus.

LM – Como é o seu processo criativo ao trabalhar com materiais reciclados e reaproveitados?

LG – Desafiador, mas eu amo fazer. Tenho orgulho em dizer que em nossos projetos em comunidades já foram reutilizadas mais de 46 toneladas de diferentes tipos de resíduos: têxteis, couros, forros de containers, copos plásticos, resíduos de palmeiras de dendê etc.

Para mim, exercer a profissão de designer é ter como prioridade buscar formas de proporcionar qualidade de vida, e ter a criatividade como minha principal parceira é um prazer. O resíduo tem vida própria, ele vai lhe dando os caminhos de formas para ser transformado, o mais importante é saber perceber esses sinais.

LM – Quais são suas principais influências artísticas ao criar peças de upcycling?

LG – Minha mãe sempre foi uma importante referência. Cresci tendo a vivência de tê-la como uma maravilhosa artesã, fazendo desde minhas roupas a decoração dos meus aniversários, entre outras coisas. No universo da moda, Paco Rabanne e Viviene Westwood são grandes mestres. Também utilizo o grafismo como uma importante fonte de pesquisa.

LM – De que forma você ressignifica os materiais utilizados em suas peças? Como acontece o reaproveitamento de materiais na prática?

LG – Procuro desenvolver peças que utilizem a maior quantidade de resíduos possíveis. Também busco a segurança, por isso sempre recebo o resíduo higienizado. Depois faço uma triagem de cores e tamanhos. Mas o principal é estudar e planejar o que fazer antes mesmo de receber o resíduo e, nesse processo, gosto sempre de fazer com a empresa que está descartando pois podemos criar um ciclo de logística reversa e assim o resultado dessa solicitação fica muito melhor.

LM – Pode destacar algumas peças específicas do acervo que serão exibidas na exposição? Qual é a história por trás delas?

LG – Os vestidos feitos com o resíduo dos uniformes dos trabalhadores da construção da Arena Fonte Nova se destacam pois o ‘antes’ e o ‘depois’ sempre causam uma grande surpresa nas pessoas. Fiz essas peças em 2012 para um desfile manifesto que não tinha o objetivo de comercialização e sim buscar reduzir o preconceito com o resíduo.  Acredito que consegui, pois muitas pessoas queriam comprar as peças.

LM – Como o conceito de “wearable art” é incorporado nas peças feitas com reutilização de resíduos?

LG – Desde o início da minha carreira sempre busquei ter a moda como uma forma de expressão artística e cultural. Crio estampas, bordados em mosaicos e os temas sempre se relacionam com minha bagagem cultural. Cada coleção conta uma história. Wearable art é uma forma de deixar o trabalho artístico em movimento, mas também poderia ficar imóvel em uma parede.

LM – Como você avalia o cenário da moda sustentável hoje no Brasil?

LG – Finalmente estamos evoluindo, mas de forma global os resultados dos números de quanto se produz ainda está muito distante de quanto se recicla ou reutiliza. mas estamos todos falando muito nesses assuntos.

LM – Considerando sua atuação pioneira em soluções de upcycling, quais os principais desafios e conquistas da sua marca ao longo desses 28 anos?

LG – Começamos em 1996, quando meu lixo se transformou nos meus bordados. Esse processo de olhar para o meu lixo com atenção foi importante e transformá-lo em inovação me deixa feliz. Mas o que mais me orgulha é poder dizer que mais de 54 mil pessoas já foram impactadas de forma positiva direta ou indiretamente com os projetos que participamos. Eu entro em comunidades desde 2009 e, às vezes, passo seis meses convivendo com pessoas incríveis. Trocar saberes com essas pessoas é o maior legado que trabalho para deixar. O instituto da marca surge com essa função de tornar esse legado vivo, sempre olhando pro coletivo, pois eu não consigo fazer nada sozinha.

Fonte: Doris Pinheiro
Foto: Divulgação

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