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Questão de saúde – Aborto legal acima de 20 semanas é raro e expõe falhas na atenção às pessoas que gestam

Entre os fatores que retardam a realização do procedimento, especialistas apontam a desinformação sobre o direito e dificuldades de acesso aos serviços de saúde

O aborto legal é garantido em três hipóteses pelo ordenamento jurídico brasileiro e, se ele acontece em estágios avançados da gestação, é por falhas do sistema que deveria garantir esse direito às pessoas que gestam. Isso é o que afirma a médica e doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), Greice Menezes. De acordo com a pesquisadora, são raros os casos em que o procedimento ocorre em gestações acima de 20ª semana.

“A grande maioria das mulheres buscam os serviços antes de 20 semanas. Se elas chegam em estágio avançado de gestação é porque algo falhou”, avalia. A declaração de Greice é corroborada pelos dados de atendimento da Maternidade Climério de Oliveira (MCO-Ufba), que é um dos serviços de referência para aborto legal no estado e o único que realiza interrupções acima de 20 semanas. Dos 110 atendimentos realizados pelo serviço de saúde entre 2021 e maio deste ano, apenas 37 (33,63%) foram para interrupção de gestações acima de 20 semanas. 

Apesar da baixa ocorrência, a realização do aborto em gestações acima de 20 semanas decorrentes de estupro foi objeto de vedação da Resolução CFM 2.378/2024 – suspensa por decisão liminar do ministro Alexandre de Moraes –  e, ainda no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, foi editada uma nota pelo Ministério da Saúde definindo que os abortos legais podem ser feitos desde que a gestação tenha tempo inferior a 21 semanas e seis dia. 

A expressão aborto legal diz respeito à interrupção de gestações em casos previstos na lei. De acordo com o Código Penal, o aborto não pode ser penalizado quando se trata de gestação com risco de vida para a gestante ou é decorrente de estupro. O STF decidiu também pela não criminalização em casos de anencefalia fetal.

Nos números divulgados pela MCO-Ufba estão inclusos atendimentos para todas as previsões legais. De acordo com a gerente de Atenção à Saúde da unidade, Roberta Vieira, a falta de informação sobre o direito ao aborto e sobre os serviços de saúde também atrasam a realização do procedimento. “Ocorre também, principalmente com crianças, a não observação das mudanças que a gestação provoca no corpo, só descobrindo tardiamente”, conta. 

No período analisado, a idade das pacientes atendidas para realização de aborto legal variou entre crianças de 11 anos e mulheres de 40. Para reverter o cenário de abuso sexual de crianças e adolescentes, a médica obstetra reforça a importância de garantir educação sobre saúde sexual e reprodutiva desde a infância. “Falar sobre esse tema em casa e nas escolas pode prevenir os casos de abuso sexual de crianças e adolescentes”, defende.

Cartilha da DPE/BA ensina crianças a se protegerem de abuso

Roberta reforça ainda a importância de garantir o acesso aos serviços de saúde e capacitar agentes de segurança pública para um acolhimento adequado às vítimas de violência sexual de modo a fazer com que elas sintam seguras para denunciar os agressores. 

Atendimento às vítimas de violência sexual

Para os casos de estupro, antes mesmo da realização do aborto, a legislação brasileira garante a chamada profilaxia da gravidez. Em vigor desde 2013, a Lei nº 12.845 torna obrigatório o atendimento às pessoas em situação de violência sexual em todos os hospitais integrantes da rede do SUS. Além da contracepção de emergência, a lei garante profilaxia contra Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), tratamento de lesões físicas e acompanhamento multiprofissional das vítimas.

Na avaliação da pesquisadora Greice Menezes, o funcionamento efetivo da legislação garantiria a identificação precoce de uma gestação decorrente da violência. “A vítima precisa ser orientada sobre a necessidade de teste sanguíneo para verificar gravidez caso haja atraso na menstruação. Se confirmada a gravidez e ela optar por interromper, o procedimento será feito mais cedo”, explica Greice Menezes.  

A profilaxia para HIV e para gestação indesejada previstas na legislação precisam ser aplicadas em 72 horas do evento. O tempo é importante pois, depois desse período, ambas perdem a eficácia. Além disso, Greice lembra que a diferença de janelas imunológicas entre as diferentes IST’s requer um acompanhamento de, pelo menos seis meses, das vítimas pelas unidades de saúde. 

Outro desafio presente na efetivação da lei é apontado pela defensora pública Lívia Almeida, que coordena o Núcleo de Defesa das Mulheres e a Especializada de Direitos Humanos da Defensoria Pública da Bahia. Para ela, ainda predomina no senso comum uma concepção de violência sexual que dialoga com a imagem do beco escuro. “Muitas mulheres desconhecem que a violência sexual também pode acontecer dentro do relacionamento, praticada pelo namorado ou marido. Isso dificulta a produção de estatísticas e o atendimento às vítimas”, avalia.

Nesse sentido, Roberta Vieira cita os chamados casos de “stealthing”, que consiste na retirada do preservativo durante a relação sexual, sem o consentimento da outra pessoa. A conduta pode ser caracterizada crime de violação sexual mediante fraude, descrito no artigo 215 do Código Penal. “Ainda que o início da relação sexual tenha sido consentido, a partir do momento em que há a falta de consentimento para a retirada do preservativo, a conduta pode ser caracterizada como crime de estupro”, conta.

Incompatibilidade com a vida

No caso de gestações de fetos incompatíveis com a vida, Greice afirma que a baixa qualidade dos equipamentos de ultrassonografia e dificuldade de acesso aos serviços de saúde prejudicam o diagnóstico da anomalia que, muitas vezes, só é descoberta em estágio avançado da gestação. Desde 2012, por decisão do Supremo Tribunal Federal, é permitido o aborto de fetos anencéfalos. O procedimento é regulado pela Resolução CFM Nº 1.989/2012 e dispensa autorização judicial.

Má qualidade de exames dificulta diagnóstico de incompatibilidade com a vida (Foto: Pexels)

Contudo, há outros tipos de malformação fetal, também incompatíveis com a vida, que precisam ser judicializadas para garantir a interrupção da gravidez. Ou seja, além do diagnóstico, essas mulheres precisam ter assegurado o acesso à justiça. “As pesquisas mostram que, com o diagnóstico, as mulheres não demoram muito para entender se vão continuar a gravidez. O processo decisivo não explica a demora para realizar o procedimento”, aponta.

As barreiras de acesso aos serviços de saúde prejudicam, sobretudo, as mulheres pobres que moram em locais afastados dos centros urbanos. De acordo com Greice, muitas vezes elas precisam peregrinar para ter uma ultrassonografia com qualidade suficiente para atestar que o feto tem anomalia incompatível com a vida. Nos encaminhamentos do interior do estado recebidos pelo Núcleo de Defesa das Mulheres da DPE/BA, muitas vezes, é preciso realizar exames complementares para fechar o diagnóstico.

“A gente articula com as secretarias de saúde do interior para acionar o TFD [Tratamento Fora de Domicílio] e fazer exames mais detalhados que, na maioria das vezes, o município de origem não disponibiliza”, explica a assistente social Thagila Rodrigues, que atua no Nudem junto aos casos de gestações com anomalia incompatível com a vida não previstos na legislação.

As pessoas que encontrarem dificuldades ou negativas para realizar o aborto legal podem buscar o Nudem da Defensoria da Bahia, presencialmente na Casa da Mulher Brasileira ou através do e-mail nudem@defensoria.ba.def.br, ou procurar as unidades da DPE/BA no interior do estado. A instituição também atua para garantir a interrupção de gestações de fetos incompatíveis com a vida não previstas no ordenamento jurídico.

Fonte: Defensoria Pública do Estado da Bahia
Foto: Divulgação

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